terça-feira, 8 de setembro de 2009

Pseudoprofundidade: como não ser um filósofo

Este texto de Stephen Law insere-se num capítulo do seu livro chamado “Ferramentas da Filosofia” e apresenta um exemplo de uma prática intelectual fraudulenta, mas muito comum: apresentar ideias triviais de um modo vago e obscuro para parecer que são profundas e intelectualmente valiosas. A ideia é que o treino crítico e argumentativo proporcionado pelo estudo da Filosofia pode ser uma arma contra esse género de aldrabices.

«Por todo o lado, multidões veneram especialistas de marketing, treinadores pessoais, místicos, líderes religiosos e outros pretensos gurus, à espera de uma revelação profunda. Como é que esses indivíduos iluminados obtêm a sua sabedoria? Infelizmente, em alguns casos o público é enganado por uma pseudoprofundidade.

guru enigmático A arte de parecer profundo é bastante fácil de dominar. Também você poderá fazer declarações com aspecto de profundas e sérias se seguir algumas regras básicas. Primeiro, tente declarar o incrivelmente óbvio. Mas faça-o m-u-i-to d-e-v-a-g-a-r, acenando com ar de entendido. Isso resultará especialmente bem se a sua observação tiver a ver com um dos grandes temas da vida: o amor, a morte e o dinheiro. Eis alguns exemplos: “A morte toca a todos”; “Todos queremos ser amados”; “O dinheiro usa-se para comprar coisas”. Experimente você. Se declarar o óbvio com seriedade suficiente, seguido de uma pausa sugestiva, talvez em breve veja os outros acenar em sinal de concordância e murmurar: “Isso é bem verdade”.

Agora que já fez o aquecimento passemos a outra técnica. Algumas palavras grandes e difíceis de perceber podem reforçar a ilusão de profundidade. Só é preciso um pouco de imaginação. Para começar, tente inventar alguns termos com significado semelhante a palavras familiares, mas que delas difiram de modo subtil e não totalmente claro. Por exemplo, não diga que as pessoas são alegres ou tristes, diga que têm “orientações comportamentais positivas ou negativas”, o que é muito mais impressionante. (…)

Além disso, quer seja um guru dos negócios, um líder religioso ou um místico, é sempre benéfico falar de “energias” e “equilíbrios”. Dá a impressão de que você descobriu um algum poder ou mecanismo profundo que possivelmente pode ser dominado e usado pelos outros. Assim será muito mais fácil convencer as pessoas de que, se não acreditarem nos seus conselhos, sairão a perder.

Infelizmente, alguns líderes religiosos, gurus de negócios e místicos usam estas e outras técnicas para gerar a ilusão de que conhecem verdades profundas. Como pode ver, é muito fácil gerar as suas próprias pseudoprofundidades. De certeza que [o caro leitor] ficará menos impressionado da próxima vez que os encontrar.»

Stephen Law, Guias Essenciais – Filosofia, Civilização Editora, Porto, 2009, 214-215.

Guias Essenciais – Filosofia Stephen Law Stephen Law

O cartoon é a autoria de John Chase e foi tirado daqui.

10 comentários:

Peter of Pan disse...

Óptimo post. A melhor resposta à pseudoprofundidade é a lucidez crítica.

(parabéns pela escolha do cartoon: assenta que nem uma luva!) :)

Carlos Pires disse...

Obrigado Peter.

Concordo que a "melhor resposta à pseudoprofundidade é a lucidez crítica". Infelizmente, a melhor resposta é pouco eficaz. Isso sucede frequentemente no "mundo" da educação (onde seria de esperar o contrário), pelo menos em Portugal... As coisas que já ouvi em reuniões disto e daquilo...

cumprimentos

Anónimo disse...

O post mostra como muitos dos assuntos da actualidade são abordados. Temos o exemplo dos debates televisivos que têm ocorrido entre os líderes dos principais partidos portugueses nos quais os intervenientes se limitam a falar incessantemente sem exporem uma ideia clara sobre o q irão ou pretendem fazer caso seja eleitos.
É pena que seja preferido um tipo de discurso no qual se ataca o adversário.

Concordo ainda que, como aluno, muitas das matérias que são dadas nas várias disciplinas sao expostas de um modo complexo pelo que cabe ao aluno 'descodificar' o que foi dito e assim perceber verdadeiramente o que se pretende. Penso que hoje em dia um bom aluno é aquele que consegue simplificar o que nos é exposto.

Rolando Almeida disse...

Carlos,
Esta edição é portuguesa de portugal? Não vi no site da editora e desconhecia a publicação em Portugal. parece-me é excessivo o preço.
Obrigado

Carlos Pires disse...

Caro anónimo:

Relativamente aos políticos, é verdade que muitos recorrem a frases propositadamente vagas para não se comprometerem com nenhuma ideia em concreto e tentarem agradar a gregos e a troianos.

Relativamente à complexidade daquilo que os professores dizem nas aulas, é verdade que por vezes (muitas vezes, infelizmente) se trata de afirmações desnecessariamente obscuras e que que revelam a impreparação científica e pedagógica dos professores. Mas também sucede que essa complexidade derive da dificuldade dos próprios assuntos.

cumprimentos

Carlos Pires disse...

Rolando:

A edição é portuguesa. Há uma edição brasileira: "Guia ilustrado Zahar de filosofia".

O preço é de facto excessivo. Julgo que se deve às ilustrações - também excessivas, quer na quantidade quer no tamanho.
Não comparei com o original, mas o português um bocado frouxo leva-me a desconfiar da qualidade da tradução. E o que terá escrito o Law para que traduzam por "conhecimento-capacidade"?

Seja como for, a obra é interessante e útil. Vou pedir para a comprarem para a Biblioteca da minha escola.

cumprimentos

Rolando Almeida disse...

Pois, entretanto percebi tratar-se de uma edição nacional, mas só esse conceito que citas é arrepiante. Não tenho o original e vou comprar esse. Aprecio muito o trabalho do Law, principalmente os livrinhos Philosophy Files.
abraço e obrigado

Aires Almeida disse...

Carlos,

Essa do "conhecimento-capacidade" ilustra bem a ignorância filosófica de quem traduz o livro, o que é muito comum entre nós. Se um tradutor português recebe um livro de medicina ou de biologia para traduzir, é capaz de ter um certo cuidado e consultar algum especialista experiente na matéria, e faz bem. Mas quando se trata de filosofia, isso parece tornar-se dispensável e qualquer coisa serve. É esta a ideia que muitas pessoas têm da filosofia e é, em parte, por isso que a qualidade média das traduções de filosofia em Portugal deixa tanto a desejar. A ponto de não se saber bem o que o autor escreveu e de tornar obscuro o que, no original, é bem claro.

Não tenho o livro do Law, mas penso que, no caso que referes, ele deve estar a falar dos tipos de conhecimento: proposicional, de capacidades e por contacto. Talvez utilize a expressão "skill knowledge" ou coisa parecida para se referir ao conhecimento no sentido de saber-como (saber como se faz uma pizza, saber andar de bicicleta, etc.).

O que achas?

Um abraço

Carlos Pires disse...

Aires:

O contexto é a distinção entre esses 3 tipos de conhecimento e é certamente algo desse género.
Só li algumas partes, mas nota-se rapidamente que não houve revisão filosófica. Por exemplo: que eu saiba diz-se sempre "falso dilema" e não "dilema falso".
Outro defeito da edição, mas que suponho ser comum a este género de guias, é a letra ser demasiado pequena - o que é uma consequência da profusão de imagens. Dificulta a leitura.

P.S. Não há nenhum livro do Stephen Law na Filosofia Aberta...

abraço

João disse...

Tenho esse livro. Acho optimo.

Não estarão a ser um pouco mauzinhos nas críticas?