domingo, 13 de março de 2011

O dilema das provas nacionais de Filosofia

Uma das objecções que por vezes é feita aos exames nacionais e a outras formas de avaliação externa, como os testes intermédios, afirma que provas desse género levam os professores e os alunos a ficar obcecados com a sua preparação e a descurarem actividades escolares mais interessantes e úteis – como, por exemplo, os debates e os trabalhos de pesquisa. A ideia subjacente é que ou se prepara os alunos para responderem a provas nacionais ou se ensina os alunos a pensarem criticamente e a discutir ideias.

Esse argumento é uma falácia (um falso dilema), pois as duas coisas não são incompatíveis. Contudo, para conseguir alcançar ambas é necessário (mas não suficiente, claro) que se verifiquem três condições.

1) Os conteúdos alvo de avaliação devem ser científica e pedagogicamente correctos.

2) A selecção desses conteúdos e da terminologia utilizada nas questões não pode ser arbitrária e completamente imprevisível.

3) As provas devem incluir questões que apelem ao pensamento crítico e não apenas à memorização.

É uma evidência que o actual programa de Filosofia para o Ensino Secundário dificulta bastante a satisfação da condição 1) e impede a satisfação da condição 2).

Por isso, agora que se iniciou a realização de testes intermédios em Filosofia e que está prevista a realização de um exame nacional no final do 11º ano, é indispensável que o programa seja alterado ou que sejam estabelecidas orientações para a sua gestão capazes de minimizar os seus defeitos (vagueza, extensão excessiva, desorganização, inadequação ou mesmo incorrecção de certas partes, irrelevância filosófica de outras, etc).

Caso contrário, um professor poderá cumprir o programa (de acordo com a interpretação que dele faz), dar boas aulas de filosofia e mesmo assim não preparar bem os seus alunos para o teste intermédio e para o exame.

Este ano não tenho turmas do 10º. Mas se tivesse, ao ler em algumas questões do teste intermédio de Filosofia (realizado no passado dia 22 de Fevereiro, com uma matriz muito vaga e sem quaisquer orientações de gestão do programa) expressões como “preferência valorativa” e “diálogo de culturas”, teria sentido o receio de não ter preparado bem os alunos. (A propósito, vale a pena ler os “receios” da Sara Raposo e do Carlos Café.)

Se os receios desse género condicionarem negativamente o modo como os professores de Filosofia dão as aulas (enchendo-as de mais e mais matéria, para evitar que nas provas nacionais sejam utilizados termos e conceitos por eles não usados), o argumento referido no início deixará de ser uma falácia e a existência de testes intermédios e exames a Filosofia deixará de ser benéfica. Por isso, repito, é necessário que haja ou uma reformulação do programa ou a implementação de orientações para a sua gestão.

Quando? Já no próximo ano lectivo, se quisermos que o exame nacional e os futuros testes intermédios corram bem.

8 comentários:

Aires Almeida disse...

Puseste o dedo em cheio na ferida, Carlos. É sempre bom ver alguém a pensar nos blogues, em vez da habitual conversa automática.

Carlos Pires disse...

Obrigado Aires.

Espero que sirva de alguma coisa.

Rolando Almeida disse...

Este ano não tenho qualquer turma de filosofia, mas os meus serviços foram encomendados no dia 22 para vigilância de uma turma, com exame intermédio. No próprio dia, ainda pela hora do almoço, escrevinhei também as minhas preocupações:

http://filosofiaes.blogspot.com/2011/02/1s-impressoes-sobre-o-exame-intermedio.html

abraço

Carlos Café disse...

Tens toda a razão, Carlos. O risco é real, pelas razões que tão bem apontas e ainda uma outra. Haverá decerto muitos professores de filosofia que sobrevalorizarão os resultados dos seus alunos nos testes intermédios porque se sentem eles próprios avaliados. Se juntares a isso a avaliação de desempenho docente, o cocktail pode ser um tanto ou quanto "explosivo".
Abraço para ti e para a Sara

Carlos Pires disse...

Obrigado, Rolando.

Fui ver o que escreveste e concordo genericamente. Andamos todos a dizer o mesmo, pois o problema é óbvio. Pode ser que isso contribua para a mudança.

Carlos Pires disse...

Carlos:

Um dos melhores efeitos de uma avaliação externa (exames nacionais e outras modalidades, como os testes intermédios) bem feita é dificultar essa tendência para puxar a brasa à sua sardinha. No caso dos testes intermédios talvez exista alguma tentação, pois são os próprios professores que corrigem os testes dos seus alunos. Talvez fosse bom existirem alguns mecanismos de aferição (troca de alguns testes, por exemplo).

Obrigado.

Rolando Almeida disse...

Já agora aproveito aqui a conversa para deixar o link do blog do Aires para os alunos dele com algumas opiniões dos próprios alunos dignas de registo:

http://questoesbasicas.blogspot.com/2011/02/teste-intermedio-o-que-vos-pareceu.html#comments

abraços

Unknown disse...

Estou de acordo com o que foi escrito.A avaliação externa em filosofia é necessária: tem conteúdos como saber e competências que a tornam possível.O argumento da subjectividade da filosofia não colhe, pois ele decorre substancialmente da confusão entre reflexão crítica e a mera opinião(conversa de café), do modo como se ensina - manuais, alguns modelos de 'ensino' e substancialmente do programa, que carece urgentemente de ser alterado.A este propósito, creio que podiam ser criados três programas específicos: um essencialmente sobre estética para as artes, outro de epistemologia para as ciências e outro de ética-política para as humanidades, tendo em conta os 'cursos' do secundário.Tal tornaria possível um aprofundamento do pensamento filosófico e da respectiva área de estudo,indo simultaneamente ao encontro dos interesses académicos dos alunos.De acordo com esta ideia, a filosofia transitaria como ensino obrigatório para o 11º e 12º.Creio que o exame nacional para todos e a mudança de programa são condição indispensável para retirar a disciplina do lugar residual em que se encontra.

Mª Alcina C. Dias