terça-feira, 13 de julho de 2010

Fazer mal em nome do bem

Num episódio de uma série policial que passava há anos na TV portuguesa, e cujo nome não recordo, o protagonista foi prender um colega polícia. Tinha-se descoberto que este liderava um “esquadrão da morte”, um grupo clandestino de polícias justiceiros que, fartos da burocracia jurídica e da lentidão do estado de direito, tinham decidido fazer justiça pelas próprias mãos e matavam criminosos que tinham conseguido escapar à justiça devido a formalismos legais ou corrompendo as autoridades. O líder desses justiceiros sabia que não tinha hipóteses de fuga e que a resistência era inútil e, por isso, aguardou a sua detenção serenamente, sentado na sala a ouvir música. Quando o colega que o vinha prender chegou, recordou-lhe os ideais que tinham em jovens, no início da carreira, quando acreditavam que iam conseguir erradicar o crime e tornar a sociedade mais justa e segura. Não me lembro com exactidão da resposta do outro, mas envolvia as ideias de que os fins não justificam os meios e de que é contraditório e imoral combater o crime através de actos criminosos. O polícia justiceiro não contra-argumentou. Em vez disso, comentou a beleza da música e disse que quase todas as obras do seu autor, Mozart, eram a imagem viva da perfeição - a perfeição que todos deveríamos tentar alcançar na nossa vida individual e na sociedade. Tinha sido, portanto, em nome da perfeição que matara alegados criminosos cuja culpa os tribunais não tinham conseguido provar.

Tal como é ilustrado por essa história, por vezes sucede que as causas de certas acções erradas não são motivos manifestamente errados (como o egoísmo, a ganância, a crueldade, etc.) mas sim motivos geralmente considerados bons (como o amor, a amizade, a lealdade, etc.). Na vida quotidiana é fácil encontrar exemplos do género: a pessoa X maltrata e magoa a pessoa Y porque está convencida que isso lhe é exigido pela afeição que tem à pessoa Z.

A História também regista muitos crimes perpetrados em nome de valores muito estimáveis. Dois exemplos entre muitos outros. Em nome do amor de Cristo, os cristãos perseguiram, torturam e mataram milhões de pessoas. Em nome da liberdade, da justiça social e do fim da exploração do homem pelo homem, os comunistas perseguiram, torturam e mataram milhões de pessoas.

Audição: Quarteto de Mozart para Oboé, Violino, Viola e Violoncelo em Fá Maior, K. 370.

12 comentários:

Anónimo disse...

Em relação à ideia da morte no meio desse mal: talvez a morte seja necessária para a obtenção de certos resultados. A morte é dos poucos acontecimentos que consegue chocar, fazer reflectir, assustar e motivar o homem.
A questão é que nem sempre se morre pelos objectivos certos. Estou-me a lembrar das mulheres-suicida dos países islâmicos que se fazem explodir levando consigo outras pessoas inocentes.
É mesmo um assunto contraditório, por um lado parece nobre morrer por uma causa como a Liberdade ou a Justiça por outro, nem sempre estes valores são facilmente definidos e é sempre um ser humano que morre - que é para mim, como que o desaparecimento de todo um universo...
Eurico Graça

Rafeiro Perfumado disse...

Confesso que da forma como a justiça (não) actua, por vezes dá vontade de fazer justiça pelas próprias mãos. É ver casos gritantes que se arrastam à conta dos meandros legais, é ver penas suspensas para violadores, enfim, todo um rol de injustiças. O pior é quando a sede de justiça se confunde com a de vingança e nos tolda a razão.

Abraço!

Carlos Pires disse...

Rafeiro Perfumado:

A lentidão e ineficácia da justiça portuguesa é de facto exasperante. Mas fazer justiça pelas próprias mãos não é justiça, é vingança. Quem cai na tentação de o fazer está a enfraquecer o estado de direito e a causa da justiça em geral.

Rafeiro Perfumado disse...

Tenho de concordar quase totalmente, Carlos. Mas também digo, fosse eu o marido da grávida que foi violada pelo seu psicólgo e que apanhou cinco anos de pena suspensa, e digo-te que as coisas não ficariam assim. Mas isto sou eu, que tenho um feitio de cão.

Abraço!

Carlos Pires disse...

Eurico:

Creio que foi Gandhi que disse: "Há várias causas pelas quais estou disposto a morrer, mas não há nenhuma pela qual eu esteja preparado para matar".

Na minha opinião, a ideia de que nunca devemos matar é errada, pois nesse caso não poderíamos defender-nos das agressões, por injustificadas e injustas que estas fossem.
Mesmo assim, é preciso pensar duas vezes antes de declarar que neste ou naquele caso alguém tem o direito de matar.

Quanto a morrer heroicamente: por vezes pode haver meios mais eficazes de alcançar o objectivo, caso não haja é preciso ver se não levamos inocentes atrás antes de elogiar a atitude. Já me esquecia: é preciso pensar bem se o objectivo vale a pena!

Boas férias, Eurico! Faço votos que consiga entrar no curso que pretende e que este seja aquilo que espera. Felicidades!

Carlos Pires disse...

Rafeiro:

A pequena duração das penas de prisão em Portugal e o modo leve e desresponsabilizador como são aplicadas pelos juízes são algo muito injusto.

Relativamente ao facto de em certos casos uma pessoa respeitadora da lei não se conter e fazer justiça pelas próprias mãos. Pode acontecer-lhe a si, pode acontecer-me a mim. Mas quem o faça estará a agir bem? Não. Imagine que você é vítima de uma acusação falsa mas convincente e por causa disso alguém se vinga de si. Gostaria que isso lhe acontecesse? Gostaria que fazer justiça pelas próprias mãos se tornasse uma regra geral seguida por todas pessoas? Certamente que não. Por isso, não deve abrir uma excepção para si mesmo.

Ana Paula Sena disse...

De facto, fazer justiça pelas próprias mãos é algo com o qual não concordo. Admito que, em certos casos, existam atenuantes (ou agravantes) para a tentação de agir desse modo, mas, por princípio, sendo nós seres racionais (ainda que com uma grande dose de irracionalidade à mistura), deveremos ser fiéis a uma ideia de justiça. Desta faz parte aquilo a que chamamos presunção de inocência. Como respeitar esse desejo de apurar inocências e culpabilidades com rigor, a não ser concedendo o benefício da dúvida?!

Obrigada pela citação de Gandhi, gostei muito de a ler aqui. É que acontece subscrevê-la por inteiro. Eu, claro :)

Parabéns pelo vosso blogue.

Ana Paula Sena disse...

Belíssima música! E muito interessante, a questão da perfeição.

Carlos Pires disse...

Ana Paula:

Concordo!

ana disse...

Primeiro, Mozart é magnífico, adoro-o.

Segundo, obrigada por me ter visitado.

Terceiro,
A morte nunca é necessária para demonstrar alguma coisa, a morte involuntária - porque a morte ninguém escolhe, acontece - para demonstrar a justiça é a negatividade do homem, da condição de ser humano.

A justiça foi dos primeiros códigos que distanciou os homens da irracionalidade.

É verdade que a justiça tem uma venda mas ela ainda é o sustentar da civilidade.

Boa tarde!

Carlos Pires disse...

ana:

É verdade que Mozart é magnifico.

A morte nem sempre é involuntária: há pessoas que se matam por desespero, mas voluntariamente; e há pessoas que se matam por uma causa (certa ou errada).

Racionalmente não devemos defender que é preciso recorrer à morte para provar isto ou aquilo. Mas isso não impede que, nomeadamente face à irracionalidade de certas pessoas, a morte de alguém consiga servir de prova.

Anónimo disse...

Entendo a Justiça como sendo um valor prioritário da humanidade. Tirar a vida de alguém é anular o lado humano, por conseguinte, o lado racional.
As guerras (mesmo as regulamentadas pelos estados ditos evoluídos) são o exemplo da total irracionalidade e da injustiça; são o verdadeiro "contributo" para a desumanidade.
Isto para dizer, nada justifica fazer o mal, pois o acto de fazer o bem é uma tendência que não aceita contradições e requer aperfeiçoamentos.
Helena