domingo, 31 de maio de 2009

Humilhação e farsa

magritte-rene-la-victoire-A Vitória de René Magritte (1938).

Alguns dos acontecimentos que presenciámos ao longo deste ano lectivo (a enorme quantidade de legislação absurda sobre a avaliação dos professores – saíram despachos atrás de despachos, os últimos alterando e corrigindo os anteriores, antes de serem também corrigidos -, o modo desrespeitoso como o Governo lidou com os professores; e, por outro lado, as manifestações e greves dos professores) terão reflexos pouco positivos no futuro da educação em Portugal.

Por mim serão lembrados como uma humilhação (as acções do Governo) e uma grande farsa (as acções do Governo mas também as reacções dos professores). A resistência inicial e o repúdio pelo modelo de avaliação imposto deram lugar, depois das várias formas de intimidação utilizadas pelo Governo, à aceitação passiva por grande parte dos professores. A posição destes poderá ser justificada pelos interesses pessoais em jogo, ou por outras razões, certamente legítimas. Todavia, em termos práticos, significou a aceitação de um modelo avaliativo injusto e ineficaz (como, aliás, a maioria das pessoas reconhece) e cuja aplicação terá, do meu ponto de vista, consequências negativas para o futuro da educação em Portugal e da carreira docente em particular.

As escolas tornaram-se lugares onde reina a hipocrisia e em que os professores avaliados procuram – naturalmente, com muito profissionalismo e mérito - promover-se através de inúmeras actividades, em que a visibilidade é uma condição mais importante que o facto destas incidirem sobre aspectos pedagógicos relevantes.

A todos estes meus colegas, que não vislumbravam virtudes neste modelo de avaliação, mas se submeteram a ele, desejo que possam obter o Excelente, pois demonstraram possuir uma competência fundamental: não questionar as ordens vindas de cima.

Quanto aos Directores das escolas e as demais Comissões de Avaliação, desejo que façam um excelente trabalho: justo e com a objectividade e rigor que as inúmeras grelhas e orientações emanadas do Ministério decerto permitirão.

Em relação ao futuro menos imediato: espero que os professores possam vir a ser avaliados, sem humilhação e farsa, pela sua competência científica e pedagógica e com a justeza e a imparcialidade que o modelo actual de avaliação não permite.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A relação entre o salazarismo e os professores portugueses: quem enfia o balde, perdão, o barrete?

O que aprendi de História e de Sociologia nunca me permitiu perceber como é o Dr. Salazar conseguiu impor a sua medíocre ditadura durante tantos anos. Li e ouvi muitas explicações dadas por historiadores e sociólogos, mas pareciam-me sempre demasiado abstractas e vagas.

Contudo, ao observar a reacção da maioria dos professores ao modo absurdo como este governo tenciona avaliá-los (manifestaram-se em Lisboa quando estavam a ser exibidos na TV e depois, à calada e com o rabinho entre as pernas, entregaram os objectivos individuais) e a reacção desses mesmos professores ao iníquo estatuto do aluno (queixam-se na sala de professores das inúteis medidas correctivas, das estúpidas provas de recuperação que são obrigados a fazer e do trabalho burocrático excessivo – e pedagogicamente improdutivo! - que tudo isso envolve, mas depois são incapazes de deixar escrito nas actas das reuniões aquilo que pensam e que experienciam; e alguns, para evitar todas essas chatices, deixaram de ser rigorosos na marcação das faltas e, por exemplo, fecham os olhos quando os alunos chegam muito depois da hora), é que finalmente consegui perceber a durabilidade do Dr. Salazar. De modo concreto e não abstracto.

Já agora, aproveito para agradecer a esses meus caros colegas a preciosa lição.

balde Se amanhã a ministra da educação e os seus secretários de estado (a pior equipa ministerial que já houve na Educação em Portugal, por muitos anos que se recue) dissessem que os professores portugueses têm de enfiar um balde na cabeça para dar as aulas, milhares deles fá-lo-iam. Muitos nem sequer discutiriam ou perguntariam porquê; outros discutiriam, fariam algum barulho, mas depois enfiariam o balde na cabeça.

A causa dessa atitude é uma peculiar mistura de medo e de ausência de espírito crítico, muito bem captada pela expressão (tão portuguesa como os 3 efes: fado, futebol e Fátima) "o respeitinho é muito bonito".

Infelizmente, essa atitude não é específica dos professores. Encontra-se em muitos outros sectores da sociedade portuguesa.

Por isso é que o Dr. Salazar mandou em Portugal do modo que mandou de 1928 (estou a incluir o período em que foi ministro das Finanças) até 1968. Por isso é que a sua queda da cadeira não provocou o fim do Estado Novo, tendo este sobrevivido até 1974, com o governo um pouco mais soft do Dr. Marcelo Caetano. Por isso é que o motivo determinante do 25 de Abril e do fim da ditadura não foi a revolta pela falta de liberdade, mas sim uma queixa salarial e corporativa dos militares.

Esse modo de ser típico de muitos portugueses (mas não de todos, felizmente) encontra-se muito bem retratado nesta inteligente e divertida canção dos Deolinda. Inteligente, divertida e tristemente verdadeira.

Carlos Pires

Liberdade de expressão e pseudociência

«Num artigo publicado no "Guardian" intitulado "Beware of the spinal trap", o escritor de divulgação cientifica Simon Singh usou a palavra "bogus" para caracterizar a terapia efectuada pelo quiropraticos.
A BCA ou Associação Britanica dos Quiropráticos decidiu processar o Simon Singh e incrivelmente ganhou a primeira ronda».

Ou seja: tribunal britânico reprovou o que merece ser defendido (a liberdade de expressão) e defendeu o que merece ser reprovado (a pseudociência).

Leia mais no blogue “Crónica da Ciência”.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Eis o que acontece a muitas pessoas que pesquisam na Internet

Mais informação disponível em quantidade e qualidade significa necessariamente mais e melhor conhecimento?

Ou pode, pelo menos para algumas pessoas, significar apenas divertimento, prazer imediato e preguiça mental?

critical-thinking-cartoon

O cartoon foi tirado deste sítio.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A Internet permitirá a omnisciência?

“Nunca pensei vir a tornar-me omnisciente durante a minha vida, mas, à medida que o Google continua a aperfeiçoar-se e a informação on-line a expandir-se, alcancei a omnisciência, para todos os efeitos práticos.”

T. Sejnowski, “Quando se tornará a Internet consciente de si própria”, in Grandes Ideias Perigosas, coord. de J. Brockman, Tinta da China, Lisboa, 2008, pág. 176.

Se interpretarmos literalmente as palavras de Sejnowski (que é neurocientista computacional), o seu maior erro não é a ingenuidade e imprecisão da omnisciência, mas a ideia pressuposta de que ter um montão de informações guardadas algures equivale a ter conhecimento. Desde quando ter uma grande Biblioteca garante sabedoria?

terça-feira, 26 de maio de 2009

“Sair para o mundo e fazer algo que mereça a pena”

«Até à minha chegada a Nova Iorque [em 1973, para dar aulas de Filosofia na Universidade de NI], nunca conhecera ninguém que fizesse psicoterapia uma vez por semana; mas, quando travei conhecimento com o círculo de professores nova-iorquinos e suas esposas, depressa descobri que muitos deles faziam psicanálise diária. Cinco dias por semana, onze vezes por ano, tinham uma consulta de uma hora, que não podia ser cancelada por nada deste mundo, salvo numa emergência de vida ou de morte. (…) E isto não era nada barato. Alguns dos meus colegas, académicos bem remunerados e bem sucedidos, entregavam um quarto do seu ordenado anual aos seus analistas! Isto era para pessoas que, tanto quanto me era dado perceber, não eram nem mais nem menos perturbadas do que as que não faziam análise, e, com excepção do seu empenho na análise, não me pareciam diferentes das pessoas que eu conhecera em Oxford ou em Melbourne.

Perguntei aos meus amigos por que razão faziam aquilo. Responderam-me que se sentiam reprimidas, ou tinham tensões psicológicas por resolver, ou que não viam sentido para a vida.

Deu-me vontade de pegar nelas e abaná-las. Estas pessoas eram inteligentes, talentosas, abastadas e viviam numa das cidades mais estimulantes do mundo. Estavam no centro do maior centro de comunicações da História. O New York Times informava-os todos os dias do estado do mundo real. Sabiam, por exemplo, que em vários países em vias de desenvolvimento havia famílias que não sabiam de onde viria a sua comida para o dia seguinte e crianças que estavam a crescer física e mentalmente atrofiadas pela malnutrição. Sabiam, também, que o planeta podia produzir comida suficiente para cada ser humano ser adequadamente alimentado, mas esta encontrava-se tão mal distribuída que tornava risível qualquer referência a justiça entre nações. (Por exemplo, em 1973, o Produto Interno Bruto per capita dos Estados Unidos era de 6200 dólares e o do Mali 70 dólares.)

Se estes nova-iorquinos capazes e abastados tivessem saído dos divãs dos analistas, deixado de pensar nos seus próprios problemas e feito qualquer coisa quanto aos verdadeiros problemas enfrentados por pessoas menos afortunadas no Bangladesh ou na Etiópia – ou mesmo em Manhattan, umas poucas paragens de metro mais adiante -, ter-se-iam esquecido dos seus próprios problemas e talvez tivessem tornado também o mundo um sítio melhor. (…) [Ou seja:] a solução está em sair para o mundo e fazer algo que mereça a pena» [em vez de apenas olhar para dentro, só preocupados com o próprio umbigo].

Peter Singer, Como havemos de viver? – A ética numa época de individualismo, Dinalivro, Lisboa, 2006, pp. 361-362.

domingo, 24 de maio de 2009

Como funcionam os preconceitos: um exemplo

mes fichiers sélectionnée dans Musique et Variété / Chanson

Sabia da existência da Amy Winehouse, mas até o Verão passado nunca tinha ouvido as suas canções. Os meus gostos musicais não têm muito a ver com o que passa actualmente na MTV, nem com aquilo que os adolescentes actuais ouvem. Além disso, todo o folclore (que percebia vagamente pelos jornais) à volta da sua vida pessoal e o facto de vender muito (às vezes sinónimo de uma boa estratégia de marketing e não de boa música) eram motivos suficientes para não ter curiosidade.

Até que, por acaso, entrei numa loja cuja música de fundo era cantada por uma voz de que gostei particularmente. De tal forma que resolvi perguntar ao empregado, ainda com aspecto adolescente, de quem era. Ele, com um olhar incrédulo, informou-me que era da Amy Winehouse. Descobri, então, um raro gosto musical em comum com alguns (julgo que muitos) adolescentes.

Esta situação fez-me pensar no modo como os preconceitos que possuímos à partida condicionam, sem nos darmos conta disso, não só os nossos juízos estéticos como, certamente, muitos outros aspectos da nossa vida.

Verificabilidade e falsificabilidade – alguns exemplos

Consideremos as quatro afirmações seguintes de acordo com o critério de falsificabilidade:

Scarlett Johansson A) A aura de uma pessoa não é afectada pela gravidade.

B) O corpo de Scarlett Johansson é afectado pela gravidade.

C) Todos os corpos terrestres são afectados pela gravidade.

D) Todos os corpos do Universo são afectados pela gravidade.

A afirmação A) não é falsificável, pois não se consegue conceber nenhum teste para avaliá-la nem as condições em que poderia ser falsa. Não se consegue imaginar o que seria encontrar um contra-exemplo que a refutasse.

As outras afirmações são falsificáveis, pois podem ser alvo de testes empíricos e podemos indicar em que condições poderiam ser falsas. Por exemplo: se se descobrisse noutro planeta uma rocha que não fosse afectável pela gravidade a afirmação D) seria falsa.

Embora sejam todas falsificáveis, essas três afirmações têm graus diferentes de falsificabilidade. A B) é menos falsificável que a C) e esta é menos falsificável que a D). Esta é de todas a mais falsificável, pois é aquela que se refere a mais objectos e que, portanto, corre mais riscos de falhar. Por isso mesmo, é de todas a mais informativa, a que tem mais conteúdo empírico.

Se analisarmos as quatro afirmações de acordo com o critério de verificabilidade, os resultados obtidos não serão idênticos.

A afirmação A) não é verificável, pois não pode ser sujeita a testes empíricos. A afirmação B) é verificável, pois é possível estabelecer através de testes empíricos a sua verdade ou falsidade – no caso, a sua verdade.

Todavia, as afirmações C) e D) não são realmente verificáveis, pois exprimem proposições universais e não é possível fazer testes empíricos capazes de verificar o que se passa com cada um dos corpos terrestres ou do Universo. Esses testes podem apenas ser feitos em relação a alguns casos. Todavia, a generalização dos resultados obtidos não permite verificar (provar, determinar de um modo conclusivo) a verdade dessas afirmações.

(Como é sabido, uma generalização não consegue garantir a verdade da sua conclusão, mas apenas mostrar a sua – maior ou menor – probabilidade.)

Por isso, se quisermos perceber porque é as afirmações C) e D) têm carácter científico precisamos de recorrer ao critério de falsificabilidade.

sábado, 23 de maio de 2009

As teorias científicas são falsificáveis

«Uma teoria é científica se e só se faz previsões inequívocas sobre um fenómeno, esse fenómeno pode ser testado, os resultados podem ser negativos e a teoria pode, portanto, ser infirmada. Ou seja: se podem ser concebidos testes que provem que a teoria é falsa. Este critério é hoje universalmente conhecido como o critério da falsificabilidade de Popper: uma teoria é científica se e só se é falsificável.

periélio de mercure Por exemplo: a mecânica newtoniana é falsificável e, portanto, científica. Em face de um fenómeno concreto, realiza previsões inequívocas que podem ser testadas e, portanto, invalidar a teoria. Um exemplo concreto, após 250 anos de sucessos, é o da precessão do periélio [ponto mais próximo do Sol] de Mercúrio: a mecânica clássica [newtoniana] fazia previsões que se afastavam da realidade por um factor de 2. Essa falsificação da mecânica clássica abriu as portas à aceitação da relatividade geral [de Einstein] como modelo mais aperfeiçoado de uma teoria da gravitação. E forneceu também um aviso real: nenhuma teoria científica está imune à revisão.

astrologia carta_astral Como exemplo de uma teoria não científica podemos tomar a astrologia. É claro que se trata de uma teoria não falsificável. As previsões astrológicas são suficientemente vagas para nunca admitirem um teste de falsificabilidade (‘este ano tenha atenção à sua saúde’ ou ‘em Março morrerá uma figura mundialmente conhecida’, em vez de ‘a 15 de Abril vai partir uma perna’ ou ‘o papa vai morrer entre 10 e 17 de Março’). No caso (altamente improvável) de alguma vez algum astrólogo emitir uma previsão falsificável não verificada, ouve-se um coro de explicações ad hoc (…). As mais comuns são observações como ‘a astrologia funciona nalguns casos’. Em que casos não funciona? Ninguém sabe. Em que casos funciona? Ninguém sabe. O que os distingue (…)? Ninguém sabe. Assim, a astrologia está legitimada, quer acerte quer falhe as previsões. Ou seja, não é falsificável. Portanto, não é científica. É uma pseudociência.»

Jorge Buescu, O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias, 9ª edição, Gradiva, Lisboa, 2004, pág. 13.

Se quiser ler mais sobre a precessão do periélio de Mercúrio e sobre as previsões erradas da mecânica newtoniana acerca desse fenómeno clique aqui e aqui.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Pensar sobre o sentido da vida será uma perda de tempo?

sentido da vida

Temos consciência do carácter finito da nossa existência e, por isso, do facto de não ser indiferente o modo como utilizamos o nosso tempo de vida.

Contudo, pensar acerca de um problema como o sentido da vida, suscita uma certa repulsa à maior parte das pessoas: é uma questão vaga, aparentemente, desligada do quotidiano, demasiado abstracta e não produz resultados imediatos. Em suma, uma enorme perda de tempo destinada a gente ociosa e com pretensões “intelectuais”…

Mas será mesmo assim?

Perguntarmos pelo rumo atribuído ou a atribuir à nossa existência não será antes uma tarefa decisiva que cada um de nós deve levar a cabo, se quiser viver de um modo consciente e livre?

A. C. Grayling, no livro O significado das coisas, dá uma resposta interessante a essa pergunta:

«Sócrates disse, celebremente, que uma vida sem reflexão não merece a pena ser vivida. Queria ele dizer que uma vida vivida sem ponderação nem princípio é uma vida tão vulnerável ao acaso e tão dependente das escolhas e acções de terceiros que pouco valor real tem para a pessoa que a vive. Queria ainda dizer que uma vida bem vivida é aquela que possui objectivos e integridade, que é escolhida e orientada pelo que a vive, tanto quanto é possível a um agente humano enredado nas teias da sociedade e da História.

Como a expressão sugere, a “vida com reflexão” é uma vida enriquecida pelo pensamento acerca das coisas relevantes: valores, objectivos, sociedade, as vicissitudes características da condição humana, aspirações tanto pessoais como públicas (…). Não é necessário chegar a teorias apuradas sobre todos estes assuntos, mas é preciso conceder-lhes pelo menos um nadinha de reflexão (…). Pensar sobre estes assuntos é como examinar um mapa antes de começar a viagem (…). Uma pessoa que não pense na vida é como um forasteiro sem mapa numa terra estrangeira: para alguém assim, perdido e desorientado, um desvio no caminho é tão bom como qualquer outro e, se o rumo tomado conduzir a um local que vale a pena, terá sido meramente por acaso.»

A. C. Grayling, O significado das coisas, Lisboa, 2002, Edições Gradiva, pp. 11-12.

terça-feira, 19 de maio de 2009

A abdução ou argumento a favor da melhor explicação

As induções (generalizações e previsões), os argumentos por analogia e os argumentos de autoridade são argumentos não-dedutivos.

“Outro importante estilo não-dedutivo de argumentação é conhecido como inferência a favor da melhor explicação ou (…) abdução. Com este tipo de argumento (…) ponderamos a plausibilidade de uma hipótese em função do tipo de explicação que oferece. A melhor hipótese é aquela que explica mais. Assim, por exemplo, se chego a casa e encontro entranhas de rato na cozinha e o meu gato a dormir profundamente com um ar muito satisfeito no preciso momento em que habitualmente pede para ser alimentado, a melhor explicação do que aconteceu na minha ausência é que o meu gato apanhou e comeu um rato e depois pôs-se a dormir uma sesta.

gato e rato Tom & Jerry (…) Mas há outras possíveis explicações para o que sucedeu. Por exemplo, outro gato pode ter entrado através da gateira e ter deixado as entranhas do rato no chão da cozinha. Ou talvez a minha mulher, tentado confundir-me, tenha matado e desmembrado um rato deixando-o ali para incriminar o gato. A minha conclusão de que foi o meu gato que matou e comeu o rato é, contudo, a mais plausível em circunstâncias como estas. Isso é assim porque, enquanto as hipóteses alternativas conseguem explicar as entranhas, não explicam a razão por que o gato parece tão satisfeito.

Este tipo de raciocínio é muito importante na ciência e no quotidiano. Mas, como mostram os exemplos anteriores, não é completamente fiável. Há sempre outras possíveis explicações dos mesmos factos [embora menos prováveis, atendendo às várias circunstâncias envolvidas]. A minha mulher podia ter incriminado o gato, tendo escolhido precisamente um dia em que o gato estivesse particularmente inactivo de modo a que ele dormisse durante a hora habitual da refeição. A conclusão da inferência a favor da melhor explicação não se segue, então, inevitavelmente das premissas, ao contrário do que sucede com um argumento dedutivo válido.

(…) As inferências a favor da melhor explicação carecem da fiabilidade dos argumentos dedutivos. Isto não deve ser interpretado como uma crítica à inferência a favor da melhor explicação. Usamos este estilo de raciocínio precisamente nas circunstâncias em que a dedução é impossível: quando, por exemplo, tentamos compreender a causa ou explicação de algo e há mais do que uma perspectiva possível acerca de como as coisas acabaram por ser o que são.”

Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia, 2ª edição, 2007, Lisboa, pp. 187-189.

Nota: as palavras argumento, raciocínio e inferência exprimem aproximadamente o mesmo.

domingo, 17 de maio de 2009

Matriz do 5º teste de Filosofia do 11º ano (turmas A e C)

Temas:

A teoria do conhecimento de Hume. A distinção entre conhecimento vulgar e científico. O problema da verificabilidade das hipóteses. O método científico.

Matriz do 5º teste, 11º S 08 09

O Sócrates é prepotente e mentiroso!

- Erixímaco – perguntou Alcíbiades, «meu excelente amigo, acreditas de verdade naquilo que Sócrates disse há pouco? Sabes que o que se passa é exactamente o contrário daquilo que ele afirmou? Este indivíduo, se me ponho a elogiar alguém na sua presença – trate-se de um deus ou de um homem qualquer, contando que não seja ele – não passa sem chegar a vias de facto…

- Não terás tento nessa língua? – interrompeu Sócrates.

- Por Posídon! – exclamou Alcíbiades. – Não te zangues, nem eu seria capaz de louvar fosse quem fosse diante de ti!

- Se assim queres – conciliou Erixímaco – faz isso mesmo: um elogio de Sócrates.»

Platão, O Banquete, 214d, tradução de Mª T. Schiapa de Azevedo, Edições 70, Lisboa, 1991, pág. 88.

Chamo a atenção dos leitores menos atentos que, embora a etiqueta “Portugal” exista no Dúvida Metódica, ela não foi colocada neste post.

(Gostava de ter sido eu o autor da ideia, mas infelizmente este post é um mero plágio de um post que li há meses noutro blogue – talvez o Câmara dos Lordes, mas não tenho a certeza.)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

John Coltrane e Stan Getz

Uma pessoa que goste de coisas tão maravilhosas como ervilhas com ovos, amoras, algumas canções de Jorge Palma, filmes de Woody Allen, livros de Ian McEwan ou cartas longas não precisa fazer um grande esforço intelectual para perceber que podem existir pessoas inteligentes e com bom gosto que não gostem dessas coisas.

Mas quem ouve John Coltrane e Stan Getz tocar juntos, por muito que se esforce dificilmente consegue entender o ponto de vista das pessoas que não gostam de Jazz.

Ok! Reconheço que estou a exagerar: há maneiras mais simples e mais rigorosas de dizer que gosto muito, muito desta música!

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Algumas diferenças entre o senso comum e a ciência

mulher-cozinhando-velasquez Do senso comum fazem parte conhecimentos vulgares mas muito úteis na vida quotidiana (saber cozinhar, conhecer a cidade onde se vive, saber que no Verão há mais calor que na Primavera, etc.).

Pode também incluir superstições, isto é, crenças falsas ou injustificadas (acreditar que o número 13 dá azar, acreditar que uma mulher durante o período menstrual não deve fazer bolos pois estes não ficarão bons, etc.).

Vejamos algumas das características distintivas entre senso comum e ciência.

As crenças que fazem parte do senso comum adquirem-se com base na experiência quotidiana das pessoas, na chamada experiência de vida (que se distingue da experiência científica por ser feita sem um planeamento rigoroso, sem método). Nalguns casos trata-se de experiências pessoais, noutros casos são experiências partilhadas pelos membros da comunidade – no decurso do processo de socialização. Em suma, é um conhecimento que se adquire sem estudos, sem investigações.

Por exemplo: para aprender onde fica a padaria mais próxima de casa ou para aprender a atar os sapatos não é preciso efectuar uma investigação metódica, basta a experiência de vida.

cientista-mulher-microscópio Pelo contrário, a ciência implica investigações, estudos efectuados metodicamente.

Por exemplo: De outra forma, como se poderia descobrir a temperatura média de um planeta tão distante como Mercúrio? Como é que a simples experiência de vida podia permitir a descoberta de que a luz do Sol leva 8,33 minutos a chegar à Terra?

O senso comum é assistemático, na medida em que constitui um conjunto disperso e desorganizado de crenças (algumas constituem conhecimentos e outras não), não implicando por parte dos seus detentores um esforço de organização. Por isso, algumas das crenças podem ser contraditórias.

Por exemplo: as mesmas pessoas podem acreditar que “Quem espera desespera” e “Quem espera sempre alcança”.

Ciência é um saber sistemático na medida em constitui um conjunto organizado de conhecimentos, havendo da parte dos cientistas um esforço para que as diversas teorias se articulem entre si e sejam coerentes.

Por exemplo: Os historiadores ficariam preocupados se descobrissem que, nas suas análises de um fenómeno do passado como a batalha de Aljubarrota, havia afirmações sobre o relevo da zona incompatíveis com as informações fornecidas pela Geografia.

O senso comum é impreciso, na medida em que normalmente não se exprime de modo rigoroso e quantificado.

A ciência é um saber mais preciso que o senso comum. As diversas ciências, naturais ou sociais, recorrem sempre que possível à Matemática, na tentativa de apresentar resultados rigorosos. Mesmo nas investigações em que não é possível quantificar (a observação psicológica de uma certa pessoa, por exemplo) existe essa procura do rigor.

Por exemplo: É de conhecimento geral que no Norte de Portugal chove mais do que no Sul. O conhecimento científico desse fenómeno é muito mais exacto: no mês de Janeiro de 2003 a precipitação em Faro situou-se entre os 20 e os 40 mm, enquanto no mesmo período no Porto situou-se entre os 350 e os 400 mm (de acordo com o Instituto de Meteorologia).

O senso comum é acrítico. Acrítico significa não reflectido, não examinado. É compreensível que assim seja, pois trata-se de crenças cuja aprendizagem é informal: aprende-se à medida que se vai vivendo e tendo experiências, aprende-se vendo, ouvindo e imitando os outros. Muitas vezes essa aprendizagem é inconsciente: as pessoas não têm noção de que estão a aprender, mas vão interiorizando tradições, costumes, saberes práticos, etc. Tanto podem aprender crenças verdadeiras como crenças falsas e injustificadas (superstições).

Por exemplo: Algumas crianças portuguesas, ao observarem muitas vezes os pais e outros adultos deitarem lixo para o chão, aprendem a fazer o mesmo e interiorizam a ideia de que esse comportamento é correcto. Outras crianças portuguesas – talvez em menor número – ao observarem muitas vezes os pais e outros adultos deitarem o lixo para o caixote aprendem a fazer o mesmo e interiorizam a ideia de que esse comportamento é correcto. Na maior parte dos casos, tanto umas como outras realizam essas aprendizagens sem reflectir, sem discutir: limitam-se a imitar. Ou seja: aprendem acriticamente.

A ciência não pode ser acrítica como o senso comum. Pelo contrário, implica uma atitude crítica por parte dos cientistas. Ou seja: para fazer ciência é preciso reflectir, pensar pela própria cabeça, e ter uma preocupação permanente com a fundamentação das ideias. Os cientistas devem ter essa atitude crítica relativamente às suas próprias ideias e relativamente às ideias dos outros.

Por exemplo: um cientista que queira publicar um artigo científico numa revista tem de submetê-lo a um processo de avaliação que costuma ser chamado “refereeing”: o artigo tem de ser lido primeiro por especialistas da área; o nome destes não é divulgado e estes também não sabem quem é o autor do artigo, para que a crítica possa ser mais livre e imparcial.

(Na primeira imagem: “Velha fritando ovos” de Diego Velasquez.)

Provar a existência de Deus a partir de uma ideia: uma piada de mau gosto?

Alguns filósofos, como Santo Anselmo e Descartes, pretenderam demonstrar racionalmente a existência de Deus, analisando a ideia que possuímos desse ser na nossa mente – o chamado argumento ontológico.

Poderão essas tentativas ser consideradas apenas brincadeiras de mau gosto, levadas a cabo por pessoas sem sentido de humor?

Deus é apenas uma ideia

quarta-feira, 13 de maio de 2009

As pessoas não são instrumentos

"Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre simultaneamente como um fim, e nunca apenas como um meio."

De acordo com essas palavras de Kant (trata-se da chamada segunda formulação do imperativo categórico, que é um critério destinado a distinguir o certo e o errado em termos morais), não devemos tratar as outras pessoas como se fossem meros meios, mas sim como fins em si mesmas. Se as considerarmos apenas como meios (isto é, instrumentos para alcançar objectivos exteriores à sua vida) a acção será moralmente errada.

Por exemplo: procurar conversar com um amigo apenas quando isso nos dá jeito (quando precisamos desabafar, permanecendo distantes e indisponíveis quando é ele que precisa desabafar) é moralmente errado, pois constitui uma forma de instrumentalização dessa pessoa.
Pode-se dizer o mesmo de um patrão que imponha (ameaçando que não renova os contratos) aos seus empregados a realização súbita de horas extraordinárias, sem se importar com outros compromissos que estes já tivessem (ir buscar os filhos ao infantário, ir ao dentista, etc.).


Mas Kant considera igualmente que não nos devemos considerar a nós próprios meros meios.

excesso-trabalho

Por exemplo: uma pessoa completamente obsecada com o trabalho considera-se a si própria um meio de ganhar dinheiro e isso é, portanto, moralmente errado.

Outro exemplo possível é a prostituição. De acordo com as ideias de Kant, uma prostituta age imoralmente, pois utiliza o seu corpo como um meio de ganhar dinheiro.

Terá Kant razão?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Rigor matemático: com a verdade me engano!

boyfriend matemática[4]

“Boyfriend”, tirado do sítio xkcd.

A crença na causalidade é instintiva

“Tendo achado, em muitos casos, que quaisquer duas espécies de objectos – chama e calor, neve e frio – estiveram sempre combinados, se a chama ou a neve se apresentarem de novo aos sentidos, a mente é levada pelo costume a esperar o calor ou o frio e a crer que uma tal qualidade existe e se descobrirá após uma abordagem mais directa.

Esta crença é o resultado (…) de se colocar a mente em tais circunstâncias. É uma operação da alma [mente] (…) tão inevitável como sentir a paixão do amor, ao recebermos benefícios; ou do ódio, quando nos defrontamos com injúrias. Todas estas operações são uma espécie de instintos naturais, que nenhum raciocínio ou processo do pensamento (…) consegue originar ou impedir.”

David Hume, Investigação sobre o entendimento humano, Edições 70, Lisboa, 1985, pp. 50-51.

Chama vela Ou seja. Podemos observar, podemos ter impressões de duas coisas, como por exemplo a chama e o calor, mas não da conexão causal entre ambas. Consideramos que uma é causa da outra apenas porque observámos muitas vezes que uma se segue à outra (conjunção constante) e nos acostumámos a esperar que o mesmo suceda da próxima vez. Todavia, não consideramos que se trate apenas de um fenómeno psicológico: acreditamos que existe realmente uma conexão causal entre elas. Porque é que acreditamos nisso? Instinto, diz David Hume.

domingo, 10 de maio de 2009

O problema da causalidade

«Talvez um exemplo concreto possa ajudar a compreender o modo como David Hume abordou o problema da causalidade.

Imagine um bebé a quem os pais sempre tenham dado brinquedos macios e moles para se entreter. Esse bebé atira frequentemente os brinquedos para fora do berço, e eles caem no chão com um baque surdo. Um dia, o tio dá-lhe uma bola de borracha. O bebé examina-a de todos os ângulos, cheira-a, mete-a na boca, apalpa-a, depois deixa-a cair. Não obstante o exame cuidadoso a que submeteu a bola, o menino não tem maneira de saber que, em vez de cair suavemente no chão como os outros brinquedos, ela salta. Só pelo exame de uma coisa, diz-nos Hume constantemente, não poderemos dizer quais os efeitos que ela pode produzir. Só podemos determinar as suas consequências em resultado da experiência.bola de borracha

Imagine agora que o tio do menino ficou à espera de ver como brincaria ele com o seu presente. Quando o tio vê a bola cair, espera que ela salte. Se você lhe perguntar o que fez a bola saltar, ele responderá: ‘O meu sobrinho deixou-a cair’; ou ainda: ´Há uma conexão necessária entre deixar cair uma bola e ela saltar’.

Mas Hume faz uma pergunta mais profunda. Qual é a experiência que o tio tem e que falta à criança? O tio faz uso de conceitos como ´causa’ e ‘conexão necessária’. Se não se tratar apenas de palavras vazias, têm de se reportar de algum modo à experiência. Mas qual é, no caso presente, a experiência? A experiência do tio difere da experiência do sobrinho em quê?

A diferença consiste, para Hume, num facto simples. Ao contrário do sobrinho, o tio pôde observar, num grande número de casos, primeiro uma bola de borracha cair ao chão e, depois, o salto que ela dá. Na verdade, nunca na sua experiência houve um só caso em que uma bola de borracha tenha sido deixada cair numa superfície dura sem saltar, ou uma bola de borracha tenha começado a saltar sem primeiro ter caído ou ter sido atirada. Segundo Hume, há uma ‘conjunção constante’ entre a queda da bola e o salto que dá.

Mas como é que essa diferença de experiências entre o tio e o sobrinho engendra conceitos como ´causa’ e ‘conexão necessária’? O tio viu uma bola de borracha cair ao chão e saltar em muitas ocasiões, enquanto o sobrinho só viu isso acontecer uma vez. Todavia, o tio não viu nada que o sobrinho não tivesse visto também, apenas teve mais vezes a mesma sequência de experiências. Ambos observam que uma bola cai e depois salta – nada mais. O tio, porém, acredita que há uma conexão necessária entre a bola cair e saltar. E isto não é alguma coisa que ele encontre na sua experiência; a sua experiência é a mesma que a do sobrinho, só que se repetiu muitas vezes. Então, donde vem a ideia de uma conexão necessária, de uma ligação causal, se nunca foi directamente observada?

A ideia de que existem conexões causais entre os acontecimentos tem um papel importante no modo como compreendemos o mundo. Mas, quando vamos atrás desta ideia com seriedade , descobrimos que a conexão causal não é uma coisa que tenhamos alguma vez observado concretamente. Podemos dizer que o acontecimento A causa o acontecimento B , mas, quando examinamos a situação, descobrimos que é o acontecimento A seguido do acontecimento B aquilo que de facto observámos. Não existe uma terceira entidade, uma ligação causal, que também seja observada. Donde vem então essa ideia?»

Adapatado a partir de: Bryan Magee, Os grandes filósofos, Editorial Presença, Lisboa, 1989, pp. 141-143.

O livro Os grandes filósofos baseia-se numa série de programas de televisão transmitidos pela BBC em 1987. No programa sobre David Hume Bryan Magee conversou com John Passmore.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O ponto de vista de um agnóstico

agnosticismo

«Sobre os deuses, não tenho possibilidades de saber se existem ou não, nem qual é a sua forma. Muitas são as razões que me impedem tal conhecimento: a obscuridade da questão e a brevidade da vida.»

Protágoras (século V a.C)

Uma pessoa agnóstica considera - tal como a análise do significado etimológico da palavra nos diz - que não possui conhecimento para provar que Deus existe ou que não existe. Daí que opte por suspender o juízo, isto é abstém-se de tomar qualquer tipo de posição sobre o problema da existência de Deus ou dos deuses.

Assim, em vez de argumentar a favor, como fazem os crentes ou contra, como fazem os ateus, limita-se a apresentar razões para defender que acerca dessa questão nada podemos saber.

Portanto, não podemos demonstrar racionalmente a existência ou a não existência desse ser transcendente, pois o seu conhecimento escapa ao poder da razão humana.

Algumas pessoas religiosas admitem, tal como os agnósticos, que não é possível demonstrar racionalmente a existência de Deus. Mas, contrariamente aos agnósticos, consideram que podemos afirmar a existência de Deus - graças à fé. Um agnóstico não tem fé.

Nota: A citação foi retirada de Helade, antologia da cultura grega (organizada e traduzida do original por Maria Helena da Rocha Pereira), 5ª edição, Coimbra, 1990, pág. 257).

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Cegos que começam a ver: impressões e ideias

David Hume, à semelhança dos outros filósofos empiristas, considerava que todas as ideias derivam (directamente ou indirectamente, consoante são simples ou complexas) da experiência. São cópias das impressões e sem estas não se podem formar. Eis as palavras do próprio:

cega ao espelho“Se acontecer que um homem, em virtude de um defeito dos órgãos, não é susceptível de qualquer espécie de sensação, vemos sempre que ele é igualmente pouco susceptível das ideias correspondentes. Um homem cego não pode formar nenhuma ideia das cores, e um surdo dos sons. Restitua-se a cada um deles o sentido em que é deficiente; franqueando esta nova entrada para as suas sensações, patenteia-se também uma entrada para as ideias, e ele não encontra dificuldade alguma em conceber esses objectos.”

David Hume, “Investigação sobre o entendimento humano”, Edições 70, Lisboa, 1985, pp. 25-26.

O neurologista Oliver Sacks, em “Ver e não ver” (capítulo do livro “Um antropólogo em Marte”) descreve vários casos de pessoas a quem foi restituído “o sentido em que é deficiente” – no caso, a visão. As suas observações, e as de muitos outros estudiosos, parecem confirmar a ideia de Hume segundo a qual, pelo menos nos casos analisados, se não houver impressões não se consegue formar as ideias correspondentes. (Mas poderemos garantir que isso se passa necessariamente com toda e qualquer ideia?)

O que não é de modo nenhum confirmada é a afirmação de Hume que, após a restituição do sentido em falta, o indivíduo “não encontra dificuldade alguma em conceber esses objectos.” Com efeito, os indivíduos a quem foi restituída a visão revelaram enormes dificuldades em formar ideias a partir das suas recentes impressões visuais.

«O filósofo seiscentista William Molyneux, cuja mulher era cega, colocou a seguinte questão ao seu amigo John Locke: ‘Imaginemos um homem cego de nascença, já adulto, que tivesse aprendido através do tacto a distinguir um cubo de uma esfera, a quem fosse restituída a vista: conseguiria ele agora, servindo-se dos olhos, e antes de lhes tocar, distinguir qual era o globo e qual era o cubo?’ Locke ponderou este problema no seu “Ensaio sobre o Entendimento Humano”, de 1690, acabando por decidir que a resposta é não. Em 1709, na sua obra “Uma nova teoria da visão”, George Berkeley examinou esta questão com maior detalhe, integrando-a numa análise globalizante das relações entre a vista e o tacto, e concluiu que não existia forçosamente uma ligação entre o mundo táctil e o mundo visual – e que qualquer ligação entre eles poderia só poderia ser estabelecida com base na experiência.

Ainda não se tinham passado vinte anos e já estas considerações eram postas à prova – quando, em 1728, W. Cheselden, um cirurgião inglês, extraiu as cataratas dos olhos dum rapaz de 13 anos cego de nascença. Apesar da sua grande inteligência e juventude, o rapaz deparou com enormes dificuldades na interpretação das sensações visuais, mesmo as mais simples. Não possuía qualquer noção das distâncias. Não possuía qualquer noção do espaço ou das dimensões. E ficava estranhamente confuso ante a ideia de uma representação bidimensional da realidade. Tal como Berkeley antevira, ele só gradualmente foi sendo capaz de decifrar o que via, e apenas na medida em que conseguia relacionar experiências visuais com outras de natureza táctil. Algo de semelhante aconteceu com muitos outros pacientes nos duzentos e cinquenta anos decorridos desde a operação de Cheselden [até à actualidade]».

Oliver Sacks, “Um antropólogo em Marte”, Relógio D’Água, Lisboa, 1996, pág. 145.

Críticas de um anarquista à democracia

anarquismo Cartoon retirado deste sítio.

Hobbes e Locke, apesar de não defenderem, na filosofia política, pontos de vista semelhantes, estão de acordo quanto à necessidade do estado existir. Ambos procuram mostrar, embora evocando razões diferentes, que a autoridade do estado não só é legítima como a sua inexistência tornaria insuportável a vida em sociedade.

Muitos dos defensores do anarquismo discordam da perspectiva desses filósofos. Consideram absurdo colocar o problema da justificação do estado: não faz sentido procurar argumentos racionais para fundamentar a necessidade do estado porque este, simplesmente, não é necessário.

Como conceber então, partindo deste pressuposto, a organização da vida política e social?

Quais são as ideias fundamentais subjacentes ao pensamento anarquista? Como é que estas se podem aplicar à vida social e política?

O texto seguinte (retirado da revista Crítica, onde pode ser lido na íntegra) apresenta-nos, sob a forma de um diálogo, algumas dessas ideias.

“ANARQUISTA: (…) uma sociedade sem um estado é uma alternativa viável a uma sociedade com um estado.

DEMOCRATA: Essa afirmação é absolutamente essencial para os anarquistas. Sem ela o anarquismo seria apenas a apresentação de um problema filosófico para o qual não teria nenhuma solução.

ANARQUISTA: Claro. É a partir dela que vou defender a visão anarquista da sociedade na qual indivíduos autónomos em conjunto com associações voluntárias conseguem executar todas as actividades necessárias à realização de uma vida boa. Nós somos contra todas as formas de hierarquia e de coerção, não apenas no estado mas em qualquer tipo de associação.

DEMOCRATA: Apresenta então o resto do teu argumento.

ANARQUISTA: Vou apresentar o meu argumento de uma forma esquemática.

1. Todos os estados são necessariamente coercivos e, por isso, são necessariamente maus;

2. Todos os estados são necessariamente maus e, por isso, ninguém tem obrigação de obedecer ou apoiar um qualquer estado;

3. Porque todos os estados são necessariamente maus, porque ninguém tem obrigação de obedecer ou apoiar qualquer estado, e porque uma sociedade sem um estado é uma sociedade viável, todos os estados deveriam ser abolidos.

Segue-se daqui que mesmo um processo democrático não pode ser justificado se apenas apresenta procedimentos, como a regra da maioria, para fazer aquilo que é inerentemente mau fazer, isto é: permitir que algumas pessoas coajam as outras. Um estado democrático continua a ser um estado, continua a ser coercivo e continua a ser mau.”

Robert A. Dahl, traduzido e adaptado por Luís Filipe Bettencourt. Excerto retirado deDemocracy and its Critics”, de Robert A. Dahl (Yale University Press, 1991, pp. 39-42).

1. Um anarquista considera que a legitimação da democracia, através do voto, é fictícia. Explique porquê.

2. Como poderá um democrata refutar o argumento apresentado pelo anarquista?

3. Será possível colocar em prática as ideias defendidas pelos anarquistas e construir uma sociedade alternativa àquela que existe nos regimes democráticos?

domingo, 3 de maio de 2009

Uma generalização infelizmente falsa

Peter Lewis

Cartoon de Peter Lewis.

O que é o amor (de mãe)?

António Variações dedicou esta canção à sua mãe, Deolinda de Jesus.

No dia da Mãe, aqui fica uma resposta interessante e bela, embora não filosófica, à questão colocada no título deste post.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

7º Encontro de Professores de Filosofia

7º encontro de professores de filosofia

Este ano ocorrerá a 7.ª Edição dos Encontros Nacionais de Professores de Filosofia, nos dias 4 e 5 de Setembro, em Viseu.

Organização: Sociedade Portuguesa de Filosofia, em parceria com a Escola Secundária de Alves Martins.

Os temas são a Filosofia da Religião e a Didáctica da Filosofia.