DEMOCRACIA
Fui dar com a democracia embalsamada, como   
o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,    
numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima    
unguentos e colónias, queimavam-lhe incenso    
e haxixe, rezavam-lhe as obras completas do    
Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e    
o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,    
a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta    
cheirava a cemitério, como se esperasse    
autópsias que não vinham, relatórios, adêenes    
que lhe dessem família e descendência. Esperei    
que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe    
o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe    
na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a tremer    
os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?    
a última verdade do mundo? «Que queres?»,    
perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»
Nuno Júdice, A Matéria do Poema, Dom Quixote.
 
 
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