sábado, 31 de janeiro de 2009

O que se ganha com a leitura de bons livros

Escher, Libertação.

Tornei obrigatória no 10º ano a leitura do livro Ética para um Jovem de Fernando Savater. Muitos dos meus alunos consideram pouco democrática esta minha imposição. Também os desgosta o facto de, no teste de avaliação, existirem questões para verificar a leitura e compreensão da referida obra.

Muitos dos meus alunos são pessoas que frequentam há anos a escola, mas não compreendem o que se pode ganhar com a leitura de um livro - de Filosofia mas não só, pois a resistência à leitura das obras analisadas em Português é facilmente observável. Para eles é uma seca que recusam ou pelo menos vão adiando até ao último momento.

As causas deste fenómeno são complexas e não posso discuti-las todas aqui. Quero só referir que a explicação do fenómeno não pode residir apenas na existência de novos meios de comunicação e de maravilhas tecnológicas. Há pessoas, ingénuas – creio eu -, que julgam que a maioria dos alunos do secundário substituiu os “antiquados” livros em papel da minha geração por modos mais modernos de aceder ao conhecimento e à cultura em geral: a Internet, a televisão, etc. Segundo essas pessoas, os jovens lêem e acedem a diversas formas culturais de qualidade e intelectualmente estimulantes – só que já não é através dos livros.

Essa perspectiva optimista não é verdadeira. Na verdade, a utilização que a maioria dos alunos faz do computador, da televisão e de outros meios de comunicação relaciona-se apenas com o desfrutar do prazer imediato proporcionado pelos jogos, vídeos, filmes… Nada tem a ver com curiosidade em aprofundar os assuntos estudados, em alargar horizontes, em saber mais. Naturalmente que existem honrosas excepções, mas são uma diminuta minoria.

Em vez de referir todas as causas do fenómeno, vou limitar-me a apresentar alguns argumentos a favor da leitura.

A leitura de bons livros – de filosofia ou outros – permite-nos adquirir conhecimentos e proporciona um óptimo treino intelectual. O que alarga os nossos horizontes, dá-nos mais independência de espírito e capacidade crítica – em relação aos outros e a nós mesmos. O que faz com que os outros tenham mais dificuldade em manipular-nos. A leitura de alguns livros pode até ajudar-nos a ser melhores pessoas. Mas, mesmo quando isso não sucede, torna-nos pelo menos pessoas mais informadas e autónomas. O mundo é mais compreensível para quem lê do que para quem não lê.

Epicteto (um filósofo romano que durante muitos anos foi escravo) disse: “Não devemos acreditar nos muitos que afirmam que só as pessoas livres devem ser instruídas, mas devemos antes acreditar nos filósofos que dizem que só os instruídos são livres” (Epicteto, Dissertações). Epicteto tinha razão.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Algumas relações entre os vários tipos de conhecimento

Ao considerar os nossos conhecimentos podemos distinguir:
  • O conhecimento por contacto (conhecer por experiência ou contacto sensorial pessoas, objectos, lugares, etc.).
  • O saber-fazer (conhecimento prático, saber efectuar actividades).
  • O “saber que” (ou conhecimento proposicional, e que consiste naturalmente no conhecimento de proposições).

Nalgumas situações essas formas de conhecimento podem relacionar-se umas com as outras de diversos modos. Noutras situações pode não haver relação.

Existem muitos problemas cuja resolução implica o recurso aos vários tipos de conhecimento.
Por exemplo: um cirurgião precisa de ter conhecimentos práticos relativos ao manuseamento dos instrumentos cirúrgicos, mas também precisa de ter numerosos conhecimentos proposicionais acerca da anatomia e fisiologia do corpo humano, das doenças e das melhores estratégias para executar as intervenções cirúrgicas; e precisa também de algum conhecimento por contacto de cada paciente.
Passa-se o mesmo com um mecânico ou com um engenheiro agrónomo. Teste a sua compreensão explicando porquê.

O saber-fazer e o conhecimento por contacto podem muitas vezes dar origem a conhecimentos proposicionais.
No caso do saber-fazer, isso sucede principalmente quando as pessoas tentam descrever o que sabem fazer e explicam verbalmente como se faz.
No caso do conhecimento por contacto, isso sucede principalmente quando as pessoas tentam descrever algo que aprenderam por experiência, quando tentam pôr em palavras algo conhecido através do contacto sensorial.
Por exemplo:
Uma pessoa que sabe andar de bicicleta pode (se quiser ajudar uma criança a aprender, se quiser escrever um livro sobre o assunto, etc.) exprimir o que sabe através de frases como “Para andar de bicicleta é preciso manter o equilíbrio” ou “Para andar de bicicleta e não cair não se deve inclinar o corpo para um dos lados”.
Uma pessoa que conheceu pessoalmente uma personalidade famosa, por exemplo o realizador cinematográfico Woody Allen, pode depois tentar exprimir as suas impressões através de frases como “O Woody Allen é uma pessoa tímida e reservada” ou “O Woody Allen mexe muito as mãos e tem uma dicção peculiar”, etc.
Essas frases exprimem proposições. Já não se trata apenas de saber-fazer ou de conhecimento por contacto, mas de conhecimento proposicional.
Teste a sua compreensão imaginando outros exemplos.

Podemos ter um conhecimento meramente proposicional relativamente a certas coisas, mas depois desenvolver em relação a elas conhecimentos práticos e por contacto, numa tentativa de aplicar e concretizar esse conhecimento proposicional.
Por exemplo:
Uma pessoa (eventualmente um preso, numa cadeia) pode recolher muitas informações sobre informática sem saber realmente trabalhar com um computador e só depois experimentar fazê-lo. Ao fazer isso estará a desenvolver um saber-fazer, já não se limitando o seu saber informático à mera posse de informações e teorias.
Essa mesma pessoa poderá recolher muitas informações sobre a cidade de Florença (ficando a conhecer muitos aspectos geográficos, económicos, artísticos, etc.) sem nunca lá ter ido. Mas se depois visitar Florença e for ver os lugares, monumentos, etc., acerca dos quais recolhera informações estará a complementar o conhecimento proposicional que já tinha com conhecimento por contacto.
Teste a sua compreensão imaginando outros exemplos.

No entanto, essas relações entre os diferentes tipos de conhecimento não ocorrem sempre. Há muitas situações em que essas modalidades de conhecimento se desenvolvem de modo independente.
Por exemplo:
Uma pessoa pode saber andar de bicicleta e nunca formular quaisquer proposições sobre o assunto. Nesse caso, o seu conhecimento é apenas um saber-fazer (que não poderia existir se a pessoa não tivesse conhecimento por contacto de bicicletas, mas que é diferente deste – como se comprova pelo facto de muitas pessoas que já viram e tocaram em bicicletas não saberem andar de bicicleta).
Uma pessoa pode conhecer pessoalmente o Woody Allen e nunca fazer quaisquer declarações acerca dele ou sequer pensar nele. Nesse caso, o seu conhecimento é apenas um conhecimento por contacto.
Uma pessoa pode saber imensas coisas acerca da cidade de Florença e morrer sem a visitar. Nesse caso, o seu conhecimento de Florença terá sido sempre proposicional.
Teste a sua compreensão imaginando outros exemplos.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Ficha de trabalho: identificação dos diferentes tipos de conhecimento

1. Leia os exemplos com atenção e diga qual é o tipo de conhecimento referido em cada um deles: saber-fazer, conhecimento por contacto ou conhecimento proposicional.
2. Justifique de modo breve as suas respostas.

A. Há anos atrás, a Maria Francisca Botão esteve apenas meia hora na Capela Sistina, mas ainda não esqueceu o deslumbramento que sentiu perante a grandiosa beleza do local, nem as cores e as formas que viu, nem sequer os aromas que cheirou.
B. A Maria Francisca Botão sabe que a inteligência emocional (nomeadamente a auto-motivação) influencia o desempenho escolar e profissional.
C. A Maria Francisca Botão sabe muito bem disparar uma pistola.
D. A Maria Francisca Botão sabe definir conhecimento por contacto.
E. A Maria Francisca Botão nunca foi a Florença, mas recolheu imensas informações sobre essa cidade e consegue falar dela horas a fio.
F. A Maria Francisca Botão é capaz de preparar óptimas sopas.
G. A Maria Francisca Botão conhece o Centro Comercial como a palma das suas mãos.
H. A Maria Francisca Botão sabe que o saber-fazer se pode também chamar conhecimento prático.

I. A Maria Francisca Botão sabe cantarolar a canção "Jardim dos Prodígios".
J. A Maria Francisca Botão sabe que a canção "Jardim dos Prodígios" é da autoria de Jorge Palma.

K. A Maria Francisca Botão conhece a canção "Jardim dos Prodígios".

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Esperando uma carta... ou um mail

A visita de estudo que algumas turmas da Pinheiro e Rosa efectuarão no próximo dia 28 de Janeiro incluirá uma passagem pelo Museu Calouste Gulbenkian. Eis uma das obras lá exposta: S. José, de Rogier van der Weyden (1399/1400-1464).
A acompanhar um poema de João Miguel Fernandes Jorge, chamado "Esperando uma carta", inspirado nesse quadro.


Esperando uma carta


Van der Weiden o representou pela manhã.
Figura de monge escolar

olhando desde cedo os campos
espera uma carta novos passos do companheiro doutro claustro
distante
tratando os problemas da substância
em letra de tom castanho e magoado espera
uma carta toda a manhã
notícia dos campos seus a mãe ou a irmã
dirá da caça da invernia
do casamento e morte dos parentes das crias
novas
uma carta distante perdida carta.

Sem outra vida espera
uma carta amada isso de certo
olhando da pequena janela sobre os mundos
a chuva o vento o sol dos meses

esperando uma carta todas as manhãs a vida.

João Miguel Fernandes Jorge, O roubador de água, Edições Assírio e Alvim, Lisboa, 1981, pp 83.


Informação retirada do site do Museu Calouste Gulbenkian, a propósito do quadro de van der Weyden:

“Flandres, 1435-37. Este é um fragmento que fez parte de um retábulo separado por razões desconhecidas, ao qual também pertenceu a pintura Madalena lendo (The National Gallery, Londres). Julga-se que o conjunto, originalmente uma Sacra Conversazione, terá constituído uma das principais obras da primeira fase de produção autónoma de Rogier van der Weyden.”