terça-feira, 3 de março de 2009

Exemplo de divergência de opiniões: a música de Strauss é sublime ou mera gritaria?


Há dias atrás, depois de uma aula em que – para ilustrar o argumento céptico da divergência de opiniões - exemplificámos algumas das teses, argumentos e contra-argumentos envolvidos nos debates acerca do aborto e do casamento dos homossexuais, estava no carro a ouvir as Four Last Songs” de Richard Strauss cantadas por Jessye Norman.

Uma senhora, que estacionou o seu carro ao lado do meu, ao ouvir a música disse para a filha: “Joana, estás a ouvir uma mulher a gritar?”

Deixo ao leitor duas perguntas a propósito de mais esta divergência de opiniões:

Música sublime ou gritaria?
Para responder, clique na imagem, ouça a música e – por favor – não suspenda o juízo!

No post “O argumento céptico da divergência de opiniões” referi que uma possível objecção contra esse argumento é o facto das divergências de opinião – contrariamente àquilo que é sugerido pelos cépticos - não serem insuperáveis.
Se em Portugal existisse um ensino da música digno desse nome, seria ou não provável que existissem mais pessoas a gostar da chamada “música clássica” em vez de a considerar mera gritaria?
(Um elemento factual útil para quem queira responder a essa questão. Tanto quanto sei, a referida senhora é uma pessoa inteligente e tem, até, hábitos culturais diversos e frequentes.)

5 comentários:

Aires Almeida disse...

Carlos, se seguirmos os teóricos do sublime do séc. XVIII (Burke, Kant, etc.), dificilmente poderíamos classificar esta canção de Strauss como sublime, dado que eles reservavam essa categoria só para a grandiosidade esmagadora de certos cenários naturais.

Mas, ao ouvir mais uma das milhares de vezes que já devo ter ouvido esta canção, apetece-me desobedecer a esses teóricos e chamar-lhe mesmo sublime. Não sei bem o que é isso, mas é certamente algo cuja beleza quase nos faz levitar.

Pode ser gritaria, mas é uma bela gritaria.

Carlos Pires disse...

Boa noite Aires.

Apesar da Estética ser a disciplina filosófica a que nos últimos anos tenho dedicado menos tempo (no 10º tenho optado pela Filosofia da Religião e, por razões mais sociológicas que filosóficas, isso tem condicionado as minhas leituras e reflexões), ainda me lembro da distinção entre belo e sublime feita por Kant (nunca li Burke). Um quadro de Vermeer ou um filme de Clint Eastwood são belos, uma terrível tempestade marítima é sublime.

Mas quando utilizei a palavra "sublime" nem pensei nisso e tive em conta apenas o sentido popular da palavra: uma espécie de superlativo do belo.

Fui pouco rigoroso, eu sei. Mas talvez seja possível argumentar que certas obras belas (ou pelo menos certos momentos ou detalhes de algumas obras belas) são tão avassaladoras que aquilo que se passa na nossa mente quando as apreciamos está mais próximo do excesso da tempestade do que da harmonia e equilíbrio (das faculdades - não é assim que o Kant se expressa?) que parece caracterizar a nossa fruição de outras obras.

Se compararmos a "gritaria" de certos momentos daquelas canções de Strauss com o "Für Elise" de Beethoven talvez possamos falar - respectivamente - de sublime e de belo, ainda que no primeiro caso não esteja envolvida a "grandiosidade esmagadora de certos cenários naturais".
Será uma hipótese demasiado absurda?

Já agora: uma amiga, que percebe muito mais de música que eu, recomendou-me as interpretações de Strauss de Anne Sofie von Otte - diz ela que são preferíveis às de JNorman.

Cumprimentos.

Aires Almeida disse...

Boa noite Carlos,

Não é invulgar usar-se o termo "sublime" para caracterizar o que é superlativamente belo. Eu percebi que o sentido era esse. Apenas quis recordar que, em filosofia, havia outro. Utilizando o termo no primeiro sentido, diria que a canção de Strauss é sublime, sim.

Quanto à sugestão das interpretações das Quatro Últimas Canções, por Anne Sofie von Otter, fiquei surpreendido, pois gosto muito da voz de von Otter e desconhecia completamente que tinha alguma vez interpretado isso (estou a falar de gravações em disco). Apesar de não ser um entendido na matéria, interesso-me por essas coisas e nunca vi referências a essa interpretação.

Tens mesmo a certeza que existe? Quase que apostava que não. Talvez a tua colega esteja a confundir com a Renée Fleming, ou talvez com a Barbara Bonney, que é loura como a von Otter. Ou então com a intepretação (fabulosa) de von Otter na ópera O Cavaleiro da Rosa, de Strauss. Aliás, pensava que esta era a única obra de Strauss interpretada por von Otter.

Carlos Pires disse...

Boa tarde, já lá vão vários desde o teu comentário, mas mais vale tarde que nunca, pelo menos nestas matérias.


De facto, não sei se a Anne Sofie von Otter registou em disco alguma interpretação das 4 canções de Strauss.

A minha amiga escreveu "Srauss na interpretação da Anne Sofie von Otter" num contexto em que falávamos das 4 canções e eu, ajudado pela minha ignorância, assumi que eram as 4 canções.

Cumprimentos.

Aires Almeida disse...

Pois, por acaso a rapariga tem um disco com canções de Strauss, mas não as Quatro Últimas Canções. Até porque não parecem ser adequadas à voz dela. A von Otter é um mezzo-soprano, e estas canções são mais adequadas para soprano.

Seja como for, é música do outro mundo. As minhas preferidas são a segunda e a terceira (September e Beim Schlaffengehen). A Renée Fleming (outra excelente intérprete destas canções) diz que a preferida do público é Beim Schlafengehen. Mas a maioria das pessoas que eu conheço e que apreciam estas canções gostam mais de Im Abendrot, como parece ser o teu caso.

Im Abendrot tem, de facto, um início irresistível, mas não me parece tão intensa como as outras duas que referi.

Já agora, deixo aqui uma sugestão musical para o fim-de-semana que se aproxima: o Concerto para Piano, de Ravel, pelo Arturo Benedetti Michelangeli. O segundo andamento (lento) é também uma coisa do outro mundo. Ou antes, é deste mundo. Felizmente!